terça-feira, 11 de outubro de 2016

Resenha de Lucas Machado




Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo



Lucas Machado Fagundes[1]



                 O jurista Antonio Carlos Wolkmer é o autor do livro “Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito” e um dos mais destacados pensadores críticos do Direito na América do Sul. Ainda que seja embaraçoso localizá-lo em uma corrente teórica do pensamento jurídico (CHAVES, 2011, p. 827) é possível filiar a sua perspectiva ao viés humanista e democrático, com atuações em áreas específicas do Direito, pois, sua pesquisa é de caráter interdisciplinar,  que permeia os campos da sociologia e da cultura jurídica, da teoria, da filosofia e da história do Direito, com incursões e contribuições da filosofia política e das teorias sociais. Esses traços elencados são marcantes na carreira do autor, vale referir a sua posição antiformalista e crítica ao positivismo jurídico (CHAVES, 2011, p. 827) e às concepções teóricas eurocêntricas (hegemônicas nas ciências sociais aplicadas). Como alternativa a estas posturas, o autor se vincula ao forte apelo às raízes e matrizes latino-americanas do pensamento crítico, guardando uma preocupação reflexiva desde a realidade concreta do continente.

                Logo, é possível destacar que a formação crítica pode ser atribuída à sua qualificação interdisciplinar (graduação em direito, mestrado em ciência política e doutorado em Filosofia e Teoria do Direito) e por fazer parte da continuidade das gerações de pensadores jurídicos críticos da década de 1980-90 como Lyra Filho, Luis Alberto Warat, Boaventura de Sousa Santos entre outros.
              Assim sendo, o pluralismo jurídico representa o tema de conclusão do amadurecimento teórico do autor, cuja base se pode constatar a partir da crise da modernidade jurídica (com seu paradigma positivista/monista) para a qual oferece como alternativas as variadas práticas de juridicidade no cenário latino-americano que extrapolam o âmbito da juridicidade formal estatal e, evidencia uma estrutura jurídica crítica[2], original e inovadora, que enfrenta aos paradigmas hegemônicos no pensamento jurídico nacional. Ademais, essa tomada de postura é adotada por meio de uma fundamentação regional, destoando das matrizes críticas tradicionais, seja em seu viés moderno clássico das Escolas de Frankfurt ou mesmo as pós-modernas desconstrutivistas, sendo notória a sua postura de não ignorá-las e tampouco rechaçá-las, mas subsumindo-as criticamente e reinventando-as frente às necessidades emergentes da realidade social da América Latina. Esse tipo de postura é afirmado principalmente quando da emersão de novos sujeitos sociais e de novas formas de relações políticas nas sociedades em processo de descolonização.

              Dessa forma, a obra “Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito”, editado em 2015 (4ed.) pela editora Saraiva e originalmente escrito na década de 1990, representa o mais alto grau de originalidade do pensamento do autor; por essa razão, a leitura da obra permite refletir criticamente o campo jurídico regional e ter conhecimento das principais práticas comunitárias como fontes jurídicas alternativas

              A obra é visualizada panoramicamente da seguinte forma, parte de um problema concreto que é a crise e esgotamento da capacidade de resposta à sociedade pela cultura jurídica monista racionalizada ocidental, principalmente quando é confrontada pela complexidade das demandas sociais nas realidades periféricas como é o caso da América Latina. Ora, para esta problematização o autor oferece como alternativa o produto de um avanço pela seara das pesquisas nas ciências sociais participativas, entendendo que as práticas dessa tipologia social adquirem caráter jurídico e apresentam-se como alternativas às formas jurídicas estatais. Assim, as bases dessas fontes de juridicidade não é a lógica racional da modernidade com a sua fundamentação iluminista (calcada no individualismo exacerbado), ao contrário, as perspectivas pluralistas encontram-se na realidade social concreta e na materialidade das condições de produção e reprodução da vida dos sujeitos em comunidade; aparecendo uma fundamentação político-jurídica de base comunitária-participativa.

               Com estes fundamentos, o pluralismo jurídico para A. C. Wolkmer trata-se: 


[...] resposta para a crise e ineficácia da legalidade monista de tradição eurocêntrica em contexto de dependência e exclusão (já denominado Sul Global) passa, obrigatoriamente, pela ruptura com esse aparato hegemônico e universalista, incidindo na constituição gradual de alternativa de um outro paradigma societário em suas fontes de produção normativa. (WOLKMER, 2015, p. 18). 

          Essa finalidade é especificada no tema do Pluralismo Jurídico quando delineado por valores democráticos, práticas jurídicas descentralizadas, justa satisfação das necessidades fundamentais dos sujeitos subalternos e perspectivas de alteridade. Ora, como se vê trata-se de uma propositura diferenciada de Pluralismo Jurídico que não pode ser confundida com as propostas conhecidas da temática, afinal o Pluralismo Jurídico wolkmeriano atende as seguintes especificidades: “[...] não está mais vinculado à representação individual do mundo social, mas à convergência e à síntese de todos os interesses cotidianos individuais e coletivos (novas singularidades sociais), em uma perspectiva de complexidade e interculturalidade”. (WOLKMER, 2015, p. 18); ou seja, é uma práxis cotidiana comprometida com a dignidade do Outro.

          Frente a isso, é possível destacar que a proposta teórica é desenvolvida em cinco momentos, no primeiro é trabalhada a reconstrução histórico-teórica do modelo jurídico na modernidade ocidental; já no segundo momento trata o autor de expor as crises dos fundamentos e as práticas da matriz jurídica moderna ocidental aplicada ao contexto periférico nacional; no terceiro momento aparecem os indícios de alternativas ao cenário delineado nos dois capítulos anteriores, espaço em que ganha relevância a emergência do sujeito histórico, organizado hodiernamente de forma coletiva ou comunitária, expressando-se na forma de movimentos (denominados de “novos” – categoria adotada da sociologia na década de 1990); já o quarto momento é elaborado e evidenciado por meio das respostas ao contexto de crise, aparecendo as alternativas práticas que reinventam o espaço público e oferecem um novo referencial para geração de um Direito Plural e, por fim, o último momento do livro dedica-se a explorar as experiências concretas de exercício e geração de uma pluralidade jurídica pelos sujeitos sociais emergentes e organizados em movimentos, como forma de contraposição aos modelos formalistas do Direito do Estado e opondo suas construções jurídicas como alternativa.

              Como forma de encaminhar o encerramento deste recorrido na obra em questão, vale destacar que o pluralismo jurídico wolkmeriano possui como um marco de fundamentação: a alteridade, e pode ser caracterizado como a “[...] multiplicidade de práticas jurídicas existentes num mesmo espaço sociopolítico, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais.” (WOLKMER, 2015, 257). 

         Logo, a tese central do livro é o chamado pluralismo jurídico comunitário participativo, oriundo da crise de afirmação da juridicidade monista neste espaço marginal da sociedade contemporânea, e pode ser afirmado da seguinte maneira:


[...] a proposta por um pluralismo jurídico (designado comunitário-participativo) configurado através de espaços públicos abertos e compartilhados democraticamente, privilegiando a participação direta de sociabilidades excluídas e subalternas, capazes de instaurar novos direitos enquanto necessidades desejadas e possibilitando que o processo histórico de lutas se encaminhe por vontade e por manifestação autêntica das bases comunitárias. (WOLKMER, 2015, p. 82)



            Nesse sentido, referida tipologia do pluralismo jurídico estaria embasada em cinco pilares da expressão comunitária participativa: a) legitimação de novos sujeitos sociais; b) fundamentação na justa satisfação das necessidades humanas; c) democratização e descentralização do espaço público participativo; d) defesa pedagógica por ética da alteridade; e) consolidação de processos conducentes a uma racionalidade emancipatória. Conforme verificado, estas categorias do pluralismo jurídico afirma outra forma de compromisso social, como bem exemplifica o autor: “[...] esperamos que a proposta deste Pluralismo jurídico de base comunitária e participativa alcance uma prática pedagógica desafiadora, despertando estrategicamente para uma reflexão libertadora e comprometida com nossas sociedades.” (2015, p. 11).
            Portanto, com este breve panorama das principais ideias e perspectivas do pluralismo jurídico comunitário-participativo na obra de Antonio Carlos Wolkmer cabe referir que os pilares teóricos representam a efetivação de mecanismo concretos que traduzem as manifestações sociais em diferentes realidades, guardando como horizonte a emancipação social e a produção do direito que questione, critique e transforme as relações sociais na busca de uma lógica de justiça com a satisfação das necessidades fundamentais, enfim, um instrumento para reflexão que considera as práticas de justiça alternativas[3] como formas de reinvenção do espaço público e das relações sociais e jurídicas.


REFERÊNCIAS 


CHAVES, Leonardo R. M. Chaves. Antonio Carlos Wolkmer (1952-). Em: DUSSEL. E. et al. El pensamiento filosófico latinoamericano, del Caribe y "latino" (1300-2000): historia, corrientes, temas y filosofos. México: Siglo XXI, 2011.
WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma nova cultura do direito.4ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2015.
____. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2015.
____; et al. Pluralismo Jurídico: os novos caminhos da contemporaneidade. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
 




[1] Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Pesquisador do Núcleo de Pensamento Jurídico Crítico Latino-americano (coordenando a linha constitucionalismo crítico). Professor colaborador do Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Autônoma de San Luís de Potosí – UASLP, México. Professor da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC, Criciúma, Brasil.


[2] Sobre o pensamento jurídico crítico, verificar outra obra do autor: WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2015.
 
 

[3] Sobre as variadas práticas de justiça alternativas a partir do Pluralismo Jurídico, consultar a obra: WOLKMER, Antonio Carlos; et al. Pluralismo Jurídico: os novos caminhos da contemporaneidade. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2013.